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Na linha de frente

Jornalista e servidor público da Prefeitura, Rafaél de Lima, que se voluntariou para trabalhar no Centro Covid — unidade de saúde que começou operar há um mês —, relata a rotina dos plantões, os momentos de tensão e a saudade da família

24-05-2020 | 19:29:33

Jornalista e servidor público da prefeitura, Rafaél de Lima, que se voluntariou para trabalhar no Centro Covid — unidade de saúde que começou operar há um mês —, relata a rotina dos plantões, os momentos de tensão e angústia, a vida sem poder estar perto da família e o medo de ser infectado.

Rotina de Rafaél mudou no último mês, longe da família, e trabalhando no Centro de Atendimento às Síndromes Gripais (Centro Covid) — Foto: Divulgação

Quando surgiu a possibilidade de ir trabalhar no Centro de Atendimento a Síndromes Gripais (Centro Covid), a primeira sensação que tive foi de medo. Não só pela possibilidade da minha contaminação, mas, principalmente, pelo risco que haveria para minha família e, especialmente, para os meus filhos. Por outro lado, senti que, neste momento, eu não poderia cruzar os braços diante da pandemia. Era a oportunidade de poder contribuir.

Confesso que na noite do segundo plantão pensei em desistir. Questionei-me se tinha optado pela decisão correta. Vários pensamentos passaram pela minha cabeça. Se eu me contaminar, se eu transmitir para alguém, se eu morrer. Sou uma pessoa que acredita muito nos propósitos e nas oportunidades que a vida nos oferece. Fico sempre procurando nos acontecimentos diários respostas para as minhas inquietações. E foi nesse momento de dúvidas que acredito ter encontrado uma das melhores respostas.

Nesta mesma noite, uma mãe após ser atendida pelo médico e já de saída do Centro, olhou para mim e para uma enfermeira que estava ao meu lado, e disse: “ obrigada por estarem aqui.” 

A partir daí, compreendi que tinha tomado a decisão correta. E desde então, cada paciente que recebe alta é um estímulo para que a gente continue realizando nosso trabalho.

Vivendo e aprendendo com o EPI

Inicialmente, uma grande dificuldade que enfrentei foi a adaptação ao Equipamento de Proteção Individual (EPI). Principalmente ao uso da máscara e ao fato de não poder tirá-la em momento algum durante o plantão. Não poder ir no banheiro, se alimentar ou beber água durante um longo período também foram adaptações nada fáceis. São muitos os cuidados aos quais tivemos que nos adaptar. Os protocolos de segurança para entrada e saída do plantão é uma rotina nova pra todos. Na saída, seja para o intervalo ou para ir pra casa, passamos por uma área de descontaminação onde tomamos banho e os equipamentos de proteção são descartados.

É um constante trabalho em equipe. Desde a paramentação do EPI, durante todo o ciclo do atendimento e depois na desparamentação. Todos os processos são feitos com ajuda mútua dos colegas, o que reforça o comprometimento e a essência de ajuda para com o outro.

No Centro temos todos os EPIs necessários, diferentemente de outros lugares do Brasil e do mundo, que sofrem com a falta de equipamentos para proteção e segurança dos profissionais. Eu acredito que a gente acaba se sentindo mais seguro dentro do Centro do que quando estamos na rua. Por todos os cuidados e rotinas de trabalho que visam a nossa proteção e, claro, a dos pacientes. Já conversei sobre isso com outros colegas e na rua nos sentimos mais vulneráveis ao vírus, tendo em vista que nem todos estão cumprindo os protocolos de proteção.

Diante do uso das máscaras, óculos e todos os outros equipamentos que estamos submetidos, a expressão facial e a leitura labial são deixadas de lado. Não é uma opção de comunicação válida. Precisamos reaprender e compreender outras formas de linguagens. O olhar se tornou essencial. Com o passar dos dias e dos plantões a gente foi aprendendo a se comunicar e também a entender o outro através do olhar.

Nos primeiros dias, a gente não fazia ideia dos rostos dos colegas. Quando nos encontrávamos no intervalo sem os EPIs, nos surpreendíamos porque havia pessoas que já tínhamos conversado várias vezes, mas os rostos ainda eram desconhecidos. Aprendemos a nos identificar pelos olhos. Hoje a gente consegue até identificar o humor dos colegas. Conseguimos uma comunicação muito mais efetiva pelos gestos e pelos olhares. Sorrimos, ficamos alegres e tristes com o olhar.

Saudades e angústias

Eu acredito que os sentimentos que mais têm feito parte dos dias de quem está na linha de frente são angústia, saudade e solidão, principalmente quando estamos fora do plantão. Faz um mês que eu não vejo meus filhos, desde que eu fui para o Centro Covid. Desde o primeiro dia optei por me isolar da família. Acredito que essa seja a parte mais difícil. Ausência deles também causam danos, principalmente psicológicos. 

Tenho certeza que em meus 35 anos esse trabalho está sendo a maior experiência que eu tive na vida. Sinto falta dos meus filhos, de estar presente, de abraçá-los. Quem ama alguém, quem tem filhos, sabe do que estou falando e da importância disso em nossas vidas. Mas me conforta em saber que eles estão bem

Agradeço à tecnologia, que nos proporciona amenizar um pouco a saudade. Confesso que a cada chamada de vídeo dá um nó na garganta e o coração se apequena. Ainda mais quando teu filho de 4 anos, que no momento está em um apartamento, te diz: “Papai, tô peso, qué i pá casa”. Ou quando cai um dente do teu outro filho. Ele empolgado pra contar e você não está lá pra ouvir. Isso nos emociona, mas também dá força pra gente seguir em frente. Para que isso passe logo e a gente possa dar todos os abraços guardados.

O trabalho é exaustivo física e emocionalmente, diante de uma nova rotina tem alguns dias que nos marcam mais. Fazia duas semanas que estava no Centro. Sai dali pela manhã e, ao chegar em casa, senti uma tristeza. Entrei em uma sala vazia, um silêncio total, sentei em uma poltrona em frente a TV desligada e comecei a chorar. Durante meia hora, sem nem saber qual o real motivo, eu simplesmente chorei. Tem dias que são mais difíceis, mas esses dias também chegam ao fim.

Acredito que ver os familiares se despedindo dos pacientes nos marca bastante. A maioria está com medo, afinal é algo desconhecido, um inimigo invisível. Mesmo com a realidade de Pelotas sendo mais tranquila se comparada com a de outros pontos do Brasil, as pessoas são diariamente afetadas com informações de locais onde a situação é crítica, com hospitais lotados, com grande número de mortos, com enterros coletivos. A mínima suspeita de infecção já causa pavor. Percebemos isso nas despedidas dos familiares quando os pacientes vão para internação e, consequentemente, para o isolamento

Essa realidade é ainda mais cruel quando os pacientes são crianças como é o caso do Centro Covid. Muitos com poucos meses e até dias de vida. Percebemos facilmente o medo nos rostos dos pais. Com o passar dos dias a gente vai acostumando. Mesmo assim, é impossível não se deixar afetar e se sensibilizar. 

Lembro do primeiro paciente. Toda equipe envolvida para atendê-lo. Todos mobilizados para que ele tivesse melhora o mais breve possível. Dentre os quase 200 atendimentos já realizados neste primeiro mês de trabalho do Centro Covid, alguns foram marcantes. É o caso de uma bebê de 3 meses de idade que era atendida por uma casa de acolhimento do Município. Separada da família desde o nascimento, estava internada e acompanhada por uma cuidadora. Toda equipe se sensibilizou, querendo ser tio, tia ou avó da criança. Todos torcendo para sua melhora, as preocupações e assuntos giravam em volta da pequena paciente. Ela se recuperou, para o alívio de todos. 

A linha de frente

A linha de frente não é composta só pela enfermeira e pelo médico, muita gente imagina. Os técnicos em enfermagem estão lá dia após dia. Os técnicos em radiologia, os profissionais da esterilização. A trabalhadora da limpeza está lá dentro limpando. A copeira está lá servindo. O farmacêutico liberando remédio. Os vigilantes, porteiros e guardas estão lá todos os dias. O pessoal da recepção, o administrativo, a nutricionista, a assistente social. A linha de frente é composta por inúmeros profissionais, que são peças essenciais desta engrenagem. E mesmo que boa parte da mídia não fale, que as pessoas não saibam, que muitos não valorizem, essas pessoas estão lá. Também estão correndo riscos e fazendo a sua parte para que todos fiquem bem. 

Propósitos e motivações

“Sempre tem algo que podemos fazer para ajudar as pessoas”. Essas foram as palavras da minha colega Daiane Corrêa Martinez quando perguntei por qual motivo ela estava lá. Formada em enfermagem, ela atualmente trabalhava em um salão como manicure, profissão que desempenhava havia 17 anos. Diante da paralisação das atividades não essenciais, sentiu que poderia fazer alguma coisa pra ajudar.

Daiane, que faz a triagem dos pacientes no Centro Covid, contou sobre algo muito legal que aconteceu quando parou as atividades no salão. Muitas clientes que estavam com serviços pagos ligaram dizendo que não precisavam fazer mais os serviços e que os valores não precisariam ser reembolsados. Outras ligaram dizendo que mesmo sem fazer os atendimentos iam depositar o valor referente ao mês como se estivessem fazendo as unhas normalmente. A dona da sala também a isentou do aluguel pelo período que estavam com as atividades paralisadas. “Quando a gente faz o bem, de alguma forma o bem acaba voltando pra nós”, conclui Daiane.

Outra colega, a técnica de enfermagem Ane Luci Campelo, que está isolada da família desde 23 de março me disse: “O covid mudou nossas vidas”. Outra companheira de jornada, Josiane Morales, que trabalha na recepção do Centro, também me contou o motivo pelo qual escolheu ir para a linha de frente. “Pensar nos outros foi o que me fez vir pra cá”, disse. Já a enfermeira Tamires Hetsper ressaltou a importância da experiência. “Valeu muito a pena. A experiência é incrível, conhecemos pessoas e nos emocionamos muitas vezes”, conclui Tamires.

O Cristian da Silva Rubira, que trabalha na higienização do Centro, destacou a relevância do seu trabalho. “Todos são importantes. Mesmo que muitas vezes a gente pareça invisível. Quase ninguém fala em nós, mas o nosso trabalho é essencial”, afirma. E como é importante. Se após um atendimento a equipe de limpeza não tiver higienizado o local, o próximo paciente não pode ser atendido. 

Por que estou aqui

Vocês já pararam para pensar se estão preparados para perder algum ente querido? Não, acredito que ninguém esteja. Por favor, se cuidem e cuidem dos seus. A verdade é que o vírus pode ser letal, ainda não há cura e não há vacina. Tudo que temos são protocolos e recomendações para diminuir a velocidade do contágio, evitando assim um colapso no atual sistema de saúde.

A ideia que muitos têm de não serem afetados por não fazer parte do grupo de risco é assustadora. Porque todos podem ser transmissores. Mesmo que você não tenha consequências e impactos na sua saúde, o vírus pode ser mortal para alguém que você ama. Precisamos de mais compreensão e empatia. Empatia por quem está no grupo de risco e por quem está na linha de frente lutando pela vida de todos.

Eu estou aqui, porque escolhi estar, para ajudar e aprender mais. Estou aqui porque eu sabia que precisava ser um ser humano melhor. Fique bem e siga as recomendações e cuidados de prevenção. Tudo isso vai passar.

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